sábado, 4 de março de 2017

velha infância.

Então, logo depois de Victor, vieram os garotos do terceiro ano. Eles eram altos. Eles eram mais velhos. E eles não davam a mínima para a gente.

SOLTA A VINHETA.

Caio e Pedro.

O ano era 2005, e Caio e Pedro eram os reis do colégio de freiras onde eu estudava. Na pirâmide hierárquica que abrangia do ensino fundamental ao ensino médio, eles ocupavam o topo – e não só porque estavam no último ano. Havia um consenso universal de que aqueles eram os garotos mais bonitos de toda a escola, e deviam ser tratados como tais. E, claro, eles sabiam disso.
Caio e Pedro nunca andavam sozinhos. Estavam sempre acompanhados de um grupo fixo de amigos e, aonde quer que fossem, eram seguidos como se estivessem guiando a humanidade em direção à Nova Era – seja ela qual fosse. Eles tinham privilégios. Muitas vezes não precisavam pegar a fila da cantina, e duvido que algum deles já tenha estudado de verdade para alguma prova um dia. Ou feito algum trabalho. Eles eram tratados como popstars, e como todo bom popstar, precisavam de seu próprio fã clube. Mesmo sem saber, Caio e Pedro pediam por garotas adolescentes e escandalosas dispostas a inflar egos e, eventualmente, atrapalhar noites de sono. Bem, isso não seria mais um problema, pois nós estávamos prestes a chegar. 


"Nós somos mais populares que Jesus Cristo." Caio, provavelmente, em algum momento de 2005.


A fila de admiradores de Caio e Pedro era longa, e ia dos bebês do maternal até as professoras. As garotas os desejavam. Os garotos queriam ser como eles (e, ok, tenho certeza de que vários garotos os desejavam também). E lá atrás, afogadas na multidão, estávamos nós: as meninas da 7ª série. Mas nós não estávamos dispostas a ficar no fim da fila por muito tempo e, antes mesmo da metade do ano, já éramos conhecidas como a maior piada da escola.
A 6ª série era importante. Nós tínhamos fama. Dinheiro. Mulheres. Poder. Tudo bem, talvez não. Mas nós definitivamente tínhamos a vantagem de sermos os mais velhos do turno vespertino. Porém, de manhã o sistema era outro. A 7ª série não tinha prestígio algum. Na verdade, éramos uns dos mais novos dali, e mal sabíamos que estávamos prestes a perder qualquer dignidade que ainda nos restasse. Se gostar de um menino um ano mais novo era suicídio social, correr atrás dos dois garotos mais bonitos do terceiro ano configurava um novo nível de humilhação. Mas nós? Nós não ligávamos. E saíamos de casa todo dia unicamente para passar vergonha.   
Tudo começou no início do ano letivo, quando todas as garotas da turma conversavam empolgadíssimas sobre o filho de um dos professores de Educação Física. Aparentemente, ele era bonito, e tinha outro amigo bonito também. E, de repente, tínhamos tanto com o que nos ocupar que Victor, o mini Taylor Hanson, se tornava apenas uma memória deixada em 2004.
Mas vamos ao que interessa: o perfil de cada um.
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CAIO:
Sexo: Masculino.

Filiação: O pai era um dos professores de Educação Física. A mãe, não sei.

Altura: Muito alto.

Olhos: Azuis.

Cor do cabelo: Loiro escuro? Castanho claro?

Comprimento do cabelo: Longo, ia até a metade da bochecha.

Nariz: Grande.

Superpoderes: Andar em câmera lenta. Jogar o cabelo para trás de cinco em cinco minutos. Ser alto e jogar vôlei.

Citação favorita: “Elogios não me elevam, ofensas não me rebaixam. Sou o que sou e não o que acham.” (DESCONHECIDO, Autor).

PEDRO:
Sexo: Masculino.

Filiação: Não era filho de professor, então a gente não se importava. 

Altura: Nem tão alto assim.

Olhos: Castanhos.

Cor do cabelo: Castanho escuro.

Comprimento do cabelo: Longo. Maior que o de Caio.

Nariz: Normal.

Superpoderes: Andar em câmera lenta. Passar a mão no cabelo. Ser um pouco mais acessível.

Citação favorita: Provavelmente a letra de alguma música do Blink 182.
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Não vou negar, aquele foi um ano abençoado em nossas vidas. Não sei se meus critérios eram baixos, ou se Deus realmente foi bom assim com a gente, mas muitos garotos bonitos transitavam pelos corredores do Colégio Santa Clara do Nome Fictício. Talvez fosse por isso que os professores nos levavam para passar tanto tempo rezando na capela, ou nos obrigavam a ouvir a diretora cantando Noites Traiçoeiras no auditório: tínhamos que purificar os pensamentos pecaminosos que habitavam nossas mentes o tempo inteiro. Sim, Caio e Pedro estavam em outro nível. Mas gostaria de deixar aqui uma menção honrosa a todos os outros garotos mais velhos que fizeram parte do nosso despertar sexual. Meninos, muito obrigada. Agora, vamos continuar.

OS PIRULITOS

Como eu disse antes, não precisou de muito tempo para que nos tornássemos a grande piada da escola. “Por quê?”, vocês me perguntam. Bem, motivo não faltava. Começou gradualmente. No início, nós observávamos Caio e Pedro de longe. Perdíamos o ar e dávamos gritinhos sempre que os dois jogavam o cabelo para trás ao mesmo tempo (!), ou passavam em câmera lenta perto de nós. E até aí tudo bem. Mas a coisa começou a sair de controle quando outras meninas tomaram atitudes mais corajosas.
Um dia, Mari, uma colega de turma, resolveu levar um pacote de pirulitos para a aula. Não era para a gente, nem para ela, e sim para Caio e Pedro. Nós estávamos chocadas com a audácia. “Mentira que você vai fazer isso!!!”, exclamávamos em uníssono. “Você é, tipo, muito louca.”. Mas Mari sabia o que estava fazendo. Durante o recreio, ela e suas amigas hesitaram um pouco para se aproximar, mas tomaram coragem e deram um pirulito para cada um. Nós assistíamos a cena de longe, morrendo de vergonha alheia e também um pouquinho de inveja, mas até que a ideia era boa. Claro que elas não dariam o pacote inteiro. Elas eram espertas. Se dessem o pacote inteiro, eles jamais voltariam. Mas um pirulito só? Demonstrava autocontrole. Sem contar que eles esperariam o mesmo tipo de tratamento nos dias seguintes. E, sem a parte do autocontrole, foi exatamente o que aconteceu.
Todos os dias, Mari e suas amigas levavam um pacote de pirulito para o colégio, e Caio e Pedro se esbaldavam na vida de ídolo teen. Afinal, quem não gosta de bajulação e pirulito de graça? Agora eles já ganhavam mais de um, e os amigos deles começaram a lucrar também. Mari e suas amigas eram espertas, mas não eram de ferro. Terem sido notadas pelos reis do colégio foi o necessário para que elas esquecessem a dignidade e, em pouco tempo, as meninas já compravam mais de um pacote por semana. Elas mudaram também o modus operandiem vez de entregarem pessoalmente, passaram a jogar os pirulitos pela janela da nossa sala, que dava exatamente para o corredor onde eles passavam o intervalo entre as aulas. Coincidência? Acho que não. Destino? Com certeza.
O tempo foi passando e descobrimos que só distribuir pirulitos não era o suficiente. A 7ª série precisava de mais. A 7ª série precisava de algo que deixasse claro que nós não tínhamos um pingo de amor próprio, e que estávamos bem assim. Seguindo esse raciocínio, algumas garotas da minha sala começaram a se reunir na janela não só para jogar pirulitos, mas para latir sempre que Caio e Pedro passassem pelo corredor. Sim, eu disse latir. E é claro que eu não fazia isso. Eu era educada. E também muito tímida, então preferia ficar quieta. E, mesmo achando ridículo, eu não podia negar que pelo menos era engraçado. Então, tudo bem, eu não latia, mas não fazia muita diferença. Assim como as outras, eu também ficava na janela esperando algum deles passar, e se alguém me visse ali, me incluiria no bonde das cachorras da mesma forma.
Tenho certeza de que, ao escutarem o primeiro latido, Caio e Pedro perceberam a dimensão do que estava acontecendo. Eles haviam criado um monstro, e não tinha para onde correr. Além de pirulitos e carinho no ego, nós também daríamos para eles muita dor de cabeça.

INFORMAÇÕES CONFIDENCIAIS

Certa vez, as garotas convocaram uma reunião na saída da aula porque precisavam compartilhar algo urgente: não sei como, e a gente não podia perguntar, mas elas tinham conseguido o número do celular de Caio.

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA.

Era a melhor informação de todos os tempos. Sabe o que nós poderíamos fazer com aquilo? LOUCURAS. Nós poderíamos ligar para ele e dizer “alô”. Ou poderíamos esperar ele atender, gritar bem alto e desligar. Enfim, ideias não faltavam, nem motivação, e o pobre do Caio teve de lidar com garotas eufóricas ligando para ele vinte e quatro horas por dia. Minhas amigas e eu éramos um pouco mais comportadas, então ficávamos no esquema “ligaaí-aimeudeusdocéu-alô?-AAAAAAAAAAAAAAAAA-DESLIGA!”, mas é claro que havia as mais ousadas. Mari, por exemplo, disse uma vez no viva-voz: “vem apagar meu fogo”, ao que Caio, ainda bem humorado, respondeu: “não paguei a conta de água”, e fez todo mundo rir.  Ah, essa era a época das ligações de três segundos, o que deixava tudo ainda mais emocionante. Invadir a privacidade alheia hoje em dia pode ser mais fácil, mas no início dos anos 2000 era muito mais divertido.

JOGOS, GINCANA E CANTADAS

Uma das melhores épocas do ano letivo era quando acontecia a gincana e os jogos internos. Era sempre legal não ter aula direito por uma semana e poder xingar os coleguinhas das outras turmas sem se preocupar com advertência. Mas o melhor de tudo era assistir o cara (ou caras, pois foi um ano de fartura) que você gostava praticando esportes. Foi durante os jogos internos que descobrimos que Caio não só jogava vôlei, como também o fazia de cabelo PRESO. A onda do man bun (em português: coque de macho) ainda não existia, então podemos dizer que Caio era revolucionário. Ou só prático mesmo, já que para quem tem o cabelo maior, prendê-lo ou fazer um coque é simplesmente questão de lógica. Enfim, nós estávamos em uma fase de recalque – que será explicada a seguir -, e não tínhamos maturidade para ver homem usando rabinho de cavalo, então fingíamos que era ridículo. Mas eu, pelo menos, achava que ele ficava bonito. Nós íamos para o ginásio da escola todos os dias de tarde só para assistir aos jogos do 3º ano, mesmo quando nossa turma jogava no mesmo horário. Os meninos da 7ª C conseguiriam se virar sozinhos. Nós tínhamos coisas mais importantes para fazer.
Durante a gincana, fizeram um desfile para escolher o Garoto e a Garota Colégio Santa Clara Do Nome Fictício, e é claro que Caio teve de participar. Afinal de contas, aquele título já era dele, só precisavam oficializar. Minhas amigas e eu estávamos prontamente posicionadas em frente à passarela, e no momento em que Caio veio em nossa direção, cometi meu maior ato de coragem até hoje. Gritei a plenos pulmões: "SEU PAI É UM ARTISTA!!!", e deixei aquelas palavras ecoando no ar. Sabe, foi engraçado, porque todos nós sabíamos quem o pai dele era. Ele ouviu. Acho que ele riu também, mas eu posso ter imaginado. Minhas amigas riram com certeza. Velha infância começou a tocar na minha cabeça, e aquele foi basicamente o momento mais íntimo que nós já tivemos.

QUANDO O AMOR VIRA ÓDIO

Depois do episódio do celular e dos latidos incessantes na janela, certa hostilidade começou a rolar entre Caio, Pedro, o terceiro ano e a sétima série. De repente, era guerra. Você não poderia ser do 3º ano e simpatizar com alguém da 7ª série C, e vice-versa. E, caso esse alguém fosse familiar, era melhor romper o vínculo. Sim, todo mundo gosta de ser bajulado, mas há limites. E os limites com Caio e Pedro foram ultrapassados quando pirulitos se transformaram em latidos, e conversas de três segundos no celular deixaram de ser engraçadas e tornaram-se irritantes.
Mesmo desoladas pela rejeição, resolvemos agir com maturidade. Aqueles dois achavam que eram alguma coisa? Que eram deuses gregos, e podiam simplesmente nos ignorar na cara dura?  As coisas não funcionam assim, parceiro. Você simplesmente não brinca com garotas de 13 anos que têm muito tempo livre nas mãos.
Na época, todo mundo já usava Orkut, então achamos que seria inteligente e divertido se criássemos uma comunidade chamada “Odeio Garotos Metidos”, e usássemos uma foto de Caio, o garoto mais metido do mundo, para representar nosso objeto de repúdio. Em pouco tempo, todo mundo da escola já sabia da existência da comunidade, e era bem óbvio que só podia ser obra da 7ª série. Claro que, além de infantis, também ficamos com fama de recalcadas. Mas, ei, nós fomos notadas!!!! Caio logo entrou na comunidade e começou a postar nos tópicos, e mesmo trocando farpas, a gente conversava (a maioria de nós só postava em modo anônimo, óbvio. Euzinha inclusa).
Caio, ao descobrir o que tínhamos aprontado. 

 Mas, sabe, não era só recalque. Era desespero também. Nós só queríamos atenção. Nós queríamos ser adultas o suficiente, queríamos ser levadas a sério. E, claro, cyberbullying (outro termo que não existia na época, então também fomos pioneiras) foi a melhor forma que encontramos para conseguir isso.
Nós zoávamos Caio e Pedro, eles nos zoavam de volta, e ficava por isso mesmo. Eles nos achavam ridículas, nós os achávamos lindos. Eles queriam nos matar, nós só queríamos perder o BV. Desde o começo, quando tudo o que eles queriam era pirulitos, nossos interesses eram distintos demais. Não teria como dar certo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eu nunca gostei de Caio, assim, de verdade. Sim, eu o achava lindo, e, claro, sonhava acordada com ele também. Mas foi algo muito mais coletivo. Nós realmente parecíamos um fã-clube, e era disso que eu gostava. Era divertido dividir aquilo com as outras garotas, e eu gostava da adrenalina, das risadas, da emoção. Gostava de ir para a aula todas as manhãs sabendo que um dia seria diferente do outro. Que sempre que Caio e Pedro aparecessem, meu coração bateria mais forte, e sem muito esforço, eu poderia escutar o coração de mais vinte meninas batendo no mesmo ritmo. Eu amava poder viver o lado feliz e doce de ser adolescente, mesmo que na época eu acreditasse que a adolescência fosse durar a vida inteira. E, de certa forma, eu ainda acredito. Mas eu não sabia que as memórias daqueles anos eventualmente se tornariam meu lugar seguro. Um cantinho que eu revisitaria sempre que precisasse me lembrar de que a felicidade e a magia que tanto vemos nos filmes existem, e que é tudo uma questão de tempo, lugar, e um pouquinho de inocência.
E era isso. Nunca passei dias ouvindo Marjorie Estiano pensando em Caio (até porque a música oficial dele era Velha Infância), nem sentia inveja do sol que aquecia Pedro. Era algo tão distante que não conseguia nem me imaginar namorando um deles, e minha imaginação sempre foi ótima. Eu tenho certeza de que eles nunca vão se esquecer das garotas loucas da sétima série, apesar de não conseguirem identificar a maioria de nós. E nós não poderíamos nos esquecer dos micos que pagamos juntas nem se quiséssemos. Mas foi legal, foi divertido, e foi uma história. E, no fim das contas, é isso que importa.

Agora, antes de finalizar, um apelo:

(Câmera 1, foca de novo em mim. DJ, solta aí Noites Traiçoeiras.)

Caio e Pedro, eu sei que vocês nem sabem quem eu sou. Para vocês, eu era apenas um pirulito sem rosto.  Só mais uma menina latindo na multidão. E, de verdade, eu não me importo. Mas, ao contrário de Victor, vocês existem. Vocês estão por aí vivendo a vida, utilizando redes sociais, dando o ar da graça pelas ruas e deixando uma marca no planeta. Então, se por acaso encontrarem esse texto, ignorem, porque eu não estava falando de vocês. Okay, eu estava, mas olha... Eu nem falei mal de ninguém. Tudo o que eu fiz foi encher vossas bolas. Vocês foram populares durante o colégio e, de brinde, ainda ganharam uma versão romantizada de tudo o que aconteceu. E, se quiserem minha opinião, é algo do que se gabar. Dá para anexar esse texto no currículo. Mostrar para a esposa ou namorada. Guardar e ler para os filhos um dia, ou promover uma reunião da turma de 2005 só para exibirem isso num telão. As opções são muitas, e todas elas são adoráveis. Muito, muito melhores do que um processo.
E, vamos combinar, vocês se sentiram nostálgicos, não? Ah, ótimo. Eu também. Aquele pátio, aquela escola... O amor da diretora por Noites Traiçoeiras... Certamente, um dos melhores anos da minha vida. E, mesmo sem terem a intenção, vocês fizeram parte dele. Então, obrigada.
Obrigada também por não me processarem. Sabia que poderia contar com vocês.
Até mais, e um beijo da 7ªC. 

(E, sim, Caio, a citação favorita era do seu Fotolog. A foto da comunidade a gente tirou de lá também. Desculpa.) 



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