segunda-feira, 4 de julho de 2022

Por que não devemos esperar que Stranger Things mate seus protagonistas

 


Este texto é um manifesto, uma reflexão, e possivelmente um pedido de ajuda de uma mulher que passa tempo demais no Twitter, mesmo sabendo que a alternativa mais fácil é simplesmente sair de lá.

SENTIDO IMPORTA

Toda história segue uma estrutura narrativa, todo entretenimento é formulaico. E não, não há nada de errado nisso.

Fosse o caso, não teríamos cursos de roteiro, estudos sobre mitologias, workshops de escrita criativa. Existe todo um aparato de ferramentas visando a mesma finalidade: destrinchar e repassar os elementos arquetípicos responsáveis por construir uma boa história; demonstrar como preencher a necessidade de um começo, meio e fim.

Não sei de onde surgiu a nova ideia de que, pra algo ser bom, precisa ser subversivo e completamente original — como se uma baboseira dessas fosse possível; como se não houvesse um mar profundo e rico em símbolos onde todos temos os dois pés mergulhados, e um pouco da cabeça — mas, na prática, o que acontece é justamente o contrário.

Ideias sem estrutura narrativa são apenas caos.

Pessoas podem ser adeptas do nihilismo existencial, bradar por aí que nada faz sentido, ter evidências o suficiente para corroborar sua teoria, mas, nas histórias criadas por nós, tudo tem um porquê de existir. A ficção é diferente da vida justamente para atribuir significado a ela. É o motivo pelo qual os mitos existem, no fim das contas: pra que o ser humano faça sentido de si mesmo e do mundo que habita, através de sua capacidade de traduzir suas emoções em palavras. A palavra, conectada a outra palavra, de forma intencional e encaixada, nos dá a possibilidade de observar e entender, de organizar externamente o que existe dentro, e não se afogar em si mesmo.

Nossas questões internas, ainda que projetadas sobre uma tela, anseiam por resolução, não interrupção.

STRANGER THINGS NÃO SE ESTABELECE COMO UMA SÉRIE QUE MATA PROTAGONISTAS

É isso.

Partindo do pressuposto de que todo entretenimento segue uma fórmula, parece claro que a cartilha seguida pelos Duffer Brothers não é essa.  Caso contrário, teriam estabelecido isso no começo, na primeira temporada (responsável por introduzir aquele universo e suas regras), ou quem sabe até na segunda.

Game of Thrones, sempre apontada como uma série subversiva e, até certo ponto, aclamada por isso, por exemplo, mesmo em toda sua disruptividade, se estabelece assim logo no início. Na primeira temporada, morre o protagonista, e você entende ali que aquele é o tipo de história em que ninguém está a salvo, não importa o quão importante, justo e bondoso seja. Literalmente qualquer um pode morrer.

E qual é o nome disso, meus amigos? Sim! Ordem! Ao entender que ninguém está à salvo, você sabe o que esperar. Esperar o inesperado.

E, até certo ponto, não tão inesperado assim.

Nos livros, pelo menos, ninguém morre à toa. Toda morte tem um motivo, serve a algo no roteiro e obedece a um arco.

O próprio George R. R. Martin brincava em entrevistas que os produtores executivos eram muito mais cruéis que ele, pois, na série, mataram muitos personagens que nos livros ainda estavam vivos (obviamente porque não sabiam escrever e se utilizavam disso para tentar mascarar a falta de talento. Palavras minhas, não do George).

E é isso que acontece quando a morte de personagens, junto à necessidade de chocar, é utilizada de forma indiscriminada como recurso preguiçoso por quem não sabe como evocar emoções em seu público de outra forma.

STRANGER THINGS É PREVISÍVEL

Pois é.

Stranger Things e uma série inspirada em filmes dos anos 80 famosos por seguirem a clássica jornada do herói, onde os protagonistas vivem uma vida ordinária, recebem um chamado, embarcam numa aventura, QUASE MORREM, entendem algo, se salvam no último minuto e fica tudo bem. E estamos falando de uma época onde os protagonistas não só sempre venciam, como representavam OS ESTADOS UNIDOS, e os seus ideais propagados durante a guerra fria.

E é, portanto, uma série extremamente previsível.

E isso é bom, é boa escrita.

Não que tudo feito por eles seja bom. Deus sabe que existe a terceira temporada.

Mas história nenhuma nasce no vácuo; é preciso ter raízes, um solo estabelecido, disseminar propositalmente sementes que vão gerar frutos mais adiante.

São deixadas dicas ao longo dos episódios para o espectador ligar os pontos e chegar a conclusões antes dos protagonistas (e se sentir muito sagaz no momento da revelação, pois estava certo!). É possível prever os acontecimentos, e até mesmo os DIÁLOGOS dos personagens.

Até o momento, nada grita a necessidade de te surpreender com o impensável. E considero isso ótimo.

Existe algo na certeza de que vai ficar tudo bem que te permite realmente vivenciar a possibilidade de tudo dar errado.

E é esse o efeito de uma boa construção narrativa: você torce pra que não aconteça, mesmo sabendo que vai acontecer. E tem medo de que aconteça, mesmo sabendo que não vai.

SUBINDO O MORRO PRA FALAR COM DEUS

Apesar de serem homens nerds, e, portanto, não confiáveis, os Duffer Brothers não demonstram sadismo em sua escrita (exceto pelo fato de o pobre do Steve ter o coração partido todo fim de temporada, e o pobre do Will Byers, a Éponine de Hawkins, pairar em situação de sofrimento ao fundo de qualquer cena do Mike com a Eleven).

Por isso não fazia sentido pra mim todos os surtos em relação a possíveis mortes da Max e do Steve. Nada na história apontava para isso. O único personagem verdadeiramente em risco era o Eddie, seguindo o padrão das outras mortes da série, e das estruturas mencionadas de narrativa: personagens novos, com os quais ainda não temos tanto apego, e carismáticos o suficiente para que a perda seja sentida.

E, apesar de triste e evitável, serviu ao enredo.

Alguém precisava morrer.

Podia ter sido o Murray, mas foi ele. Alguns sacrifícios são necessários para os Deuses do drama.

CONCLUSÃO

Stranger Things segue a fórmula clássica dos filmes de sucesso da década de 80 e 90, tão em falta na atualidade, que se manifesta cada vez mais cínica e desesperançosa: a jornada do herói, onde os protagonistas recebem o chamado, embarcam numa aventura, vivem dificuldades, compreendem algo e saem vitoriosos.

E por isso acho ilógico que qualquer um do núcleo principal morra.

Não faz sentido.

Seria cruel. E esperar que isso aconteça, para que a série seja considerada ‘boa’, além de bobo, é desonesto, uma vez que eles nunca se apresentaram assim.

Significa que não vai acontecer? Não. Claro que não. Como dito, os roteiristas são homens nerds, e, portanto, não confiáveis. Talvez chegue a 5ª temporada, eles surtem, e não sobre ninguém.

Talvez construam de forma legítima o caminho para a morte de alguma personagem importante (apesar de não conseguir imaginar uma forma não-cruel disso acontecer, visto que a morte não seria exatamente a resolução de um arco, e absolutamente TODOS os envolvidos terão de viver com as consequências do trauma vivenciado. Oi? São os anos 80. Não existe terapia no Tumblr ou no Twitter.)

Mas o ponto não é esse, e sim mostrar que, até o momento, não é o que vem sendo desenhado.

E aí fica um apelo: será que não conseguimos apenas aproveitar as coisas? É preciso tentar adivinhar o tempo inteiro o que pode acontecer, em vez de apenas aproveitar o que se tem? Quando o entretenimento se tornou fonte de mais agonia do que diversão? É todo mundo tão apavorado assim?

Enfim, Stranger Things, em sua essência, é uma história sobre amor, laços, amizade e propaganda anticomunista.

Espero que tenha um final feliz.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Nada será como antes.

Tenho pensado demais no passado, e em como eu costumava ser.

Meu cabelo, meu corpo, minha esperança, minha aparência, meu jeito de agir.
Cada nova tentativa de voltar a ser o que eu era quase prova que não dá mais.
Que não posso mais ter o que eu era antes como parâmetro, porque o que eu era antes não mais existe.
A ideia é começar de novo.
É reaprender tudo do início, num processo de tentativa e erro.
E como é frustrante tentar e errar.
Como é assustador.

Tô reaprendendo a como usar meu cabelo, como me vestir, me maquiar.
Quando recebi o Louco como carta tema do ano, não imaginei que seria assim.

Só percebi como os últimos dois anos me transformaram completamente essa semana,
com a lua cheia em sagitário, iluminando o que antes eu não conseguia ver.
Parece que a compreensão vem às prestações, assim como a mudança.

'O que está se encerrando? O que estou deixando pra trás?'
A Morte. O Mundo. O Enforcado. Cartas que se repetem.
E de ontem pra hoje acho que finalmente entendi

De alguma forma eu morri em 2019, e isso me dói.
Gostava de quem eu era ali.
De alguma forma eu sabia mais sobre mim, ou sabia o que precisava saber.
Sabia os caminhos, os atalhos, as estruturas.
Gostava do que eu fazia, de como eu parecia.
Gostava de pra onde eu ia. Do que eu sentia que ia conseguir.

Agora eu tateio no escuro, e é estranho viver o processo de dissolução enquanto se dissolve.
É estranho tomar uma nova forma quando ainda não se sabe qual a forma é.
É assustador se entregar sem saber o que vai receber.
É difícil ter fé.

E se eu nunca mais for tão legal, tão interessante?
Alguém ainda vai gostar de mim, se a melhor versão de mim já passou?
E se o melhor que eu podia ser eu já fui, e ninguém viu, ninguém experimentou?

E se eu não for tão legal, divertida, criativa, magra, bonita de novo?
E se eu não puder mais sonhar, nem tentar?
O que eu faço com o medo aqui dentro?
E se nada acontecer?

Como é difícil desapegar.
Como é difícil deixar ir quem a gente foi, quem a gente poderia ter sido.
Como é difícil confiar.
Como é difícil não saber.

O que eu faço com o medo aqui dentro?
E se nada acontecer?

Eu não quero me perder, mas parece ser parte do processo.

A parte mais assustadora da mudança é o salto de fé.
A parte mais sagrada da mudança é o salto de fé.
O momento em que é preciso pular mesmo sem saber o que te espera.
'Ainda não inventaram um jeito de ir e ficar ao mesmo tempo', diz Clarissa Pinkola Estés.
O jeito é ir.

Ouvi no início do ano 'sua vida nova vai te custar a antiga', e vejo as palavras ganharem vida e nitidez, revelando o seu significado.

Talvez o passado pareça melhor porque o passado já foi, e você não se lembra dele direito.

 


domingo, 12 de junho de 2022

Já convivi o suficiente com coisas vivas pra perceber que ficamos quietos antes de morrer


Reparando o comportamento de lagartixinhas que aparecem no meu banheiro observei que elas se preparam pra morrer. Ficam quietas. Paradinhas no mesmo canto. Mal se movimentam, não importa o que você faça. Parece uma preparação intuitiva, de quem entende a ordem natural das coisas e é sábio o suficiente pra não resistir.


A vida vai se esvaindo pouco a pouco até não existir mais.
E elas deixam.

Nos ciclos de vida-morte-vida é natural ficar parado antes de morrer. O corpo pede, a alma sabe.
A necessidade de quietude antecede a morte, os momentos de transformação. A gente precisa de descanso. De presença. Acontece quando a gente menstrua, quando a lua míngua, quando chega o outono, um mês antes do nosso aniversário...

E se ficar parado antecede a morte, ficar parado é pulsão de morte. Porque a vida é movimento, uma dança entre controle e entrega, ou, como a definição de música mais conhecida: combinação de sons e silêncio.

Não dá pra morrer e continuar vivendo ao mesmo tempo, mas é preciso morrer pra continuar vivendo.

E eu escrevo tanto sobre isso, escrevo até as mesmas coisas. A cada dia acho que internalizo um pouco mais do que teoricamente eu já sei. Deixo de apenas saber, e passo a entender, num nível interno e pessoal de quem não apenas leu e ouviu sobre, mas também ritualizou, viveu e integrou.

Lembro de uma palestra da professora e filósofa Lucia Helena Galvão, onde ela cita outro filósofo cujo nome não me lembro, mas me recordo do que ele dizia: qualquer homem solto na natureza, em algum momento, começa a observar os movimentos da vida selvagem e, a partir deles, deduzir leis. Deduz também a existência de um divino, algo maior, transcendental, mais poderoso. Então, ele olha para si, e percebe que as leis naturais também se aplicam a ele.
Eventualmente, e numa progressão bastante lógica, ele compreende que entre ele, o divino e a natureza, não existe qualquer diferença.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

29

esses 2 anos de solidão me fizeram muito mal. parece que eu morri um pouco. esqueci completamente quem eu era, e eu nem sabia direito. o pouquinho que eu lutei pra encontrar. mas a falta de companhia, de reflexo, só deixou mais claro o quão só eu realmente estava. estou. nos últimos dois meses melhorou um pouco. senti as portas começarem a se abrir, ventos novos começarem a soprar.

mas todos os dias à noite dói. não ter com quem falar, me compartilhar. não ter alguém que genuinamente sinta interesse por mim. que me olhe com curiosidade.

meus relacionamentos são todos errados. começam errados na raiz. eu não aprendi a receber, nem a me compartilhar. aprendi a me colocar no lugar da que sempre escuta, nunca fala, por puro medo de que o foco da conversa se mova pra mim, e descubram o que torna minha existência tão vergonhosa e errada. e assim fui por 29 anos, sem me permitir receber quase nada. escondendo o que mais precisa ser visto, protegendo o que é mais vulnerável, resguardando o que não vão entender.

para a grande maioria das plantas não haveria esperanças de vida depois de tanto tempo sem água. talvez meu espírito seja um cacto.

coloco os holofotes e o destaque em quem quer que esteja comigo, e posso passar horas conversando com alguém sem dizer nada ou quase nada sobre mim. e o mais doloroso é perceber que muitas vezes a outra pessoa não se importa em só falar. quando percebi isso dia desses — como eu engajava em direcionar a conversa para a outra pessoa, e o desconforto que senti quando ela perguntou sobre mim, o impulso que tive de desconversar e defletir, foi como a revelação de mais uma camada da realidade sendo exposta. notar que faço isso desde que me entendo por gente doeu e me libertou na mesma medida.

nunca me senti tão só e triste quanto em 2021. nunca doeu tanto. fui sumindo aos poucos e até meu cérebro parou de funcionar. e meus braços. e eu não conseguia conversar, escrever, criar, não conseguia fazer nada. nada que fizesse eu me sentir que sou eu mesma. nada que lembrasse os outros de que eu existo também. e a sensação de que eu estava desaparecendo só aumentava.

a noção de que você precisa fazer algo pra que as pessoas gostem de você é talvez das coisas mais cruéis que inventamos. um ciclo que se retroalimenta. é desesperador.

há anos não me sinto mais engraçada, e isso me deixa triste. há anos sinto que não me acham mais engraçada, na verdade. há anos mal convivo com pessoas pessoalmente e minhas relações estão na bolha da internet. há anos perco a confiança de falar o que me vem à cabeça, por medo de me odiarem. ser engraçada foi um dos primeiros traços de identidade que atribuíram a mim, por isso a noção de perdê-lo me desnorteia tanto. quem eu sou, se não me enxergam? do que sou feita? sou grata por nesses momentos sempre aparecer alguma coisa pra me lembrar. geralmente é o jonathan larson. foi ele em 2010 e ele em 2021 de novo.

em 2021 comecei a fazer caminhada todos os dias. foi uma das coisas que me salvou. sair de casa, ver gente, sentir o cheiro de pessoas, esbarrar em alguém por engano, interagir com estranhos, ouvir os sons do mundo lá fora, trechos de conversa, ver luzes acesas nos apartamentos; me perguntar se alguém que habitava por detrás daquelas janelas vivia a vida que eu queria pra mim. e a existência dessa vida em algum lugar, mesmo que ainda não aqui, me fazia tão feliz.

sinto que estou passando por uma mudança tão intensa que não sei o que vai permanecer e o que não mais vai se encaixar quando eu chegar ao fim dela. tô morrendo e renascendo de dentro pra fora e o processo é horrível e mágico na mesma proporção. a borboleta que pousou em mim no fim de 2019 teve seus motivos. e tô feliz por, finalmente, estar aprendendo a morrer.

eu quero ter fé e esperança. mas tenho medo de acreditar. se esse ano for mais um em que não tenho ninguém por perto, não sei se aguento. não acho que vai ser. estou ativamente dando passos para que não seja o caso desde maio do ano passado. e o fim do ano pra mim já foi tão diferente. sinto muito orgulho dos passos que dei, dos desafios que enfrentei, sabendo o quão difícil é pra mim fazer essas coisas. o que eu mais tenho medo é de gente. e é do que eu mais preciso também.

li ontem num post sobre amor próprio de uma psicóloga que sentimento nenhum nasce no vácuo, porque somos seres sociais, e na hora comecei a chorar. porque é isso. fui criada no vácuo e minha vida desde então é lutar pra sair de lá.  me materializar na realidade. existir no espaço-tempo. deixar alguém entrar.

eu quero redescobrir quem eu sou, quero estar onde me valorizem. quero encontrar minha família de origem, a que também busca por mim. assim como o patinho feio, com quem me identifico desde antes de entender o porquê. e quero ajuda pra chegar lá.

acho curioso e bonito que durante os anos em que maior parte do mundo passa a sentir medo de pessoas, desesperadamente decido me abrir pra elas. sou grata pela minha capacidade de aprender com o contraste, de querer a realidade, ainda que ela doa.

a anestesia à solidão excruciante que vivo desde criança, e os mecanismos de sobrevivência que adotei pra sobreviver, perderam por completo o efeito em 2021.

foi um ano 1, um ano difícil, um ano de crescimento e de resiliência. um ano em que tudo o que não funcionava entrou em crise pra ser fortalecido. foi também um ano bom. mágico. de lições importantes. um ano de retorno de saturno em aquário, na casa 11.

no primeiro semestre, mais precisamente em 26 de maio de 21, dia de eclipse, e um dos dias mais especiais que vivi, vi colado num poste um papel com os dizeres “pegue o que você precisa”, com opções que iam de amor a fé. pareceu sincronicidade, me senti num filme. certa do que eu queria e precisava fazer, peguei pra mim a coragem.

e aos 29 com o retorno de saturno, decidi começar a viver.



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Maira Gall